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quinta-feira, 1 de março de 2012

NAUFRAGAR É PRECISO?




      Começa a ser penoso para mim ler a imprensa portuguesa. Não
falo da qualidade dos textos. Falo da ortografia deles. Que português
é esse? Quem tomou de assalto a língua portuguesa (de Portugal) e a
transformou numa versão abastardada da língua portuguesa (do Brasil)?

      A sensação que tenho é que estive em coma profundo durante
meses, ou anos. E, quando acordei, habitava já um planeta novo, onde
as regras ortográficas que aprendi na escola foram destroçadas por
vândalos extraterrestres que decidiram unilateralmente como devem
escrever os portugueses.

      Eis o Acordo Ortográfico, plenamente em vigor. Não aderi a ele:
nesta Folha, entendo que a ortografia deve obedecer aos critérios do
Brasil. Sou um convidado da casa e nenhum convidado começa a dar
ordens aos seus anfitriões sobre o lugar das pratas e a moldura dos
quadros. Questão de educação.

      Em Portugal é outra história. E não deixa de ser hilariante a
quantidade de articulistas que, no final dos seus textos, fazem uma
declaração de princípios: “Por decisão do autor, o texto está escrito
de acordo com a antiga ortografia”.

      A esquizofrenia é total, e os jornais são hoje mantas de
retalhos. Há notícias, entrevistas ou reportagens escritas de acordo
com as novas regras. As crónicas e os textos de opinião, na sua
maioria, seguem as regras antigas. E depois existem zonas cinzentas,
onde já ninguém sabe como escrever e mistura tudo: a nova ortografia
com a velha e até, em certos casos, uma ortografia imaginária.

      A intenção dos pais do Acordo Ortográfico era unificar a
língua. Resultado: é o desacordo total com todo mundo a disparar para
todos os lados. Como foi isto possível? Foi possível por uma mistura
de arrogância e analfabetismo. O Acordo Ortográfico começa como um
típico produto da mentalidade racionalista, que sempre acreditou no
poder de um decreto para alterar uma experiência histórica particular.

      Acontece que a língua não se muda por decreto; ela é a
decorrência de uma evolução cultural que confere aos seus falantes uma
identidade própria e, mais importante, reconhecível para terceiros.

      Respeito a grafia brasileira e a forma como o Brasil apagou as
consoantes mudas de certas palavras (“ação”, “ótimo” etc.). E respeito
porque gosto de as ler assim: quando encontro essas palavras, sinto o
prazer cosmopolita de saber que a língua portuguesa navegou pelo
Atlântico até chegar ao outro lado do mundo, onde vestiu bermudas e se
apaixonou pela garota de Ipanema.

      Não respeito quem me obriga a apagar essas consoantes porque
acredita que a ortografia deve ser uma mera transcrição fonética. Isso
não é apenas teoricamente discutível; é, sobretudo, uma aberração
prática. Tal como escrevi várias vezes, citando o poeta português
Vasco Graça Moura, que tem estudado atentamente o problema, as
consoantes mudas, para os portugueses, são uma pegada etimológica
importante. Mas elas transportam também informação fonética, abrindo
as vogais que as antecedem. O “c” de “acção” e o “p” de “óptimo”
sinalizam uma correcta pronúncia.

      A unidade da língua não se faz por imposição de acordos
ortográficos; faz-se, como muito bem perceberam os hispânicos e os

anglo-saxónicos, pela partilha da sua diversidade. E a melhor forma de
partilhar uma língua passa pela sua literatura.

      Não conheço nenhum brasileiro alfabetizado que sinta
“desconforto” ao ler Fernando Pessoa na ortografia portuguesa. E
também não conheço nenhum português alfabetizado que sinta
“desconforto” ao ler Nelson Rodrigues na ortografia brasileira.

      Infelizmente, conheço vários brasileiros e vários portugueses
alfabetizados que sentem “desconforto” por não poderem comprar, em São
Paulo ou em Lisboa, as edições correntes da literatura dos dois países
a preços civilizados. Aliás, se dúvidas houvesse sobre a falta de
inteligência estratégica que persiste dos dois lados do Atlântico,
onde não existe um mercado livreiro comum, bastaria citar o
encerramento anunciado da livraria Camões, no Rio, que durante anos
vendeu livros portugueses a leitores brasileiros.

      De que servem acordos ortográficos delirantes e autoritários
quando a língua naufraga sempre no meio do oceano?


    Texto de João Pereira Coutinho (FOLHA DE SÃO PAULO)