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terça-feira, 8 de junho de 2010

JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO POR OLIVEIRA MARTINS

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Faz hoje, 2 de Outubro, 55 anos que morreu o desbragado foliculário, o poetastro infatigável, o panfletário sabido que fundou entre nós o jornalismo político, com o Desengano, com a Tripa Virada e com a Besta Esfolada, de que chegavam a tirar-se quatro mil exemplares!
Nunca houve homem mais plebeiamente popular; nenhum dos nossos caceteiros da pena lhe deitou a barra adiante na impudência, no descaramento, na desfaçatez. A sua veia (hoje diz-se verve), a sua facúndia, eram inesgotáveis. Sabia a linguagem das colarejas e rameiras, porque as frequentava; e o calão dos cárceres e das enxovias porque passou por lá. O seu estilo era torrente, mas jorro que sai de um cano – um enxurro violento de imundícies. Criou um género, que se nacionalizou português.
Era alentejano, de Beja, onde nascera em 1761. Fez-se frade na Graça em 1778. Foi expulso por devasso em 1792. Os tempos tormentosos da passagem do século XVIII para o nosso, com o esboroar de todas as coisas, desequilibraram o pensamento e o carácter desse homem poderoso, cuja força se perdeu num dilúvio de vulgaridades, numa indigesta montanha de folhetos, de jornais, de sermões, de cartas, de poemas e de versalhada, medíocre, mas espantosa, pela quantidade – um Himalaia, de calhaus rolados!
Um grande orgulho baseado na consciência da sua força real, levava-o a odiar Camões, esse desespero de Castilho que se parece tanto com José Agostinho como uma limonada com um almude de vinho torrejano, espesso, negro, e carrascão. As cócegas da rivalidade levavam-no a beliscar em Bocage, o grande homem perdido, que lhe respondia:

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...Epístolas, Sonetos
Odes, Canções, Metamorfoses...
Na frente põe teu nome, e estou vingado.

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Elmiro, com a batina desabotoada, as ventas largas cheias de rapé, abordoado a uma bengala, membrudo, violento, ossudo, desbragado, dava murros no balcão gorduroso dos Bertrands, ao Chiado, enchendo Lisboa com o estrépito das suas polémicas e com a fama da sua vida airada.
Andava amancebado com uma freira de Odivelas; passava as noites em arruaças e bebedeiras. Acusavam-no de ter furtado livros da livraria dos Paulistas, o que provavelmente era calúnia.
Fabricava poemas: O Oriente, o Gama, A Meditação, Newton, A Natureza, para não falar nos Burros, traduzindo numa linguagem friamente convencional, sem génio, sem colorido, as sensaborias banais do racionalismo naturalista do tempo. Fazia comédias, pregava sermões. Ensaiava o drama burguês moderno, inventado por Diderot, com a Clotilde e o Vício sem Máscara, e alinhavava dissertações filosóficas. A sua veia porém, a sua vocação, era a polémica. Inventou o jornal, nacionalizou o panfleto. Foi o mestre de S. Boaventura, autor do Mastigóforo, e de Alvito Buela, o autor do Cacete.
É por ser o patriarca do jornalismo lusitano que lhe comemoramos hoje o aniversário.
Arrastado pelo movimento de entusiasmo patriótico que em 1820 expulsou os ingleses, José Agostinho apareceu liberal e democrata. Portalegre elegeu-o deputado em 1822; mas depois de 1823 e da Vila francada voltou-se como tantos outros para o absolutismo, e pôs-se à frente dos energúmenos caceteiros, que mais tarde aclamaram D. Miguel (1828).
A Tripa virada é dessa época, interessante pelo seu desvario, curiosa pelos seus entusiasmos. A Tripa virada é ele próprio, que se virou do direito ao avesso, confessando o acto com uma franqueza, com uma desfaçatez, que terão sempre aceitação entre os povos meridionais, cínicos por temperamento, nos momentos de agudas crises.
Sacudido o pó das sandálias liberais, encarneirado no bando de energúmenos avinhados que por toda a parte aclamavam D. Miguel, José Agostinho fez-se o apóstolo dessa ditadura plebeia, que veio a acabar em 1834. E de então a Besta esfolada.
Trabalhar o cacete, desandar o bordão, descarregar o arrocho, são axiomas eternos e invariáveis regras de justiça... Toma daqui, besta! Chó, besta! Isso não faz nada; é perder o tempo e com bestas não há contemplação: perde-se a obra, perde-se tudo, se o pau não trabalha, e deveras.
A violência plebeia contra os inimigos, a abjecção completa diante do tirano, o furor e a humildade, a lisonja e o vitupério; de um lado, a boca espumante e os punhos cerrados; do outro, a face por terra beijando o pó; esse estado de espírito incongruente do vilão com a vara na mão, de joelhos perante quem o armou: eis ali o que revela a oposição da Besta esfolada à Apoteose de Hércules, que se representou em S. Carlos na noite de 26 de Outubro de 1830. Hércules era D. Miguel.
Um ano depois, José Agostinho morria, sem ver o fim inevitável dessa tragi-comédia que durava desde 1828.
Morria, e, apesar da sua banalidade, da sua monstruosidade cínica, apesar de tudo, foi Alguém. O povo amou-o, sentiu pelos seus nervos, falou pela sua boca. Porquê?
Em primeiro lugar, porque o povo português, enervado por três séculos de decomposição, estava retratado na figura do padre. A força que ainda tinha esvaía-se toda em pedir arrocho, e em arrastar os cacetes apostólicos pelas portarias dos conventos e pelas vielas imundas das marafonas, cambaleando ébrio de cólera, e também de vinho frequentemente.
Mas, em segundo lugar, a razão é outra.
Dois homens podem entender-se para praticar uma traficância; muitos, é difícil – todos, nunca. Um povo pode ser cínico, mas não pode ser patife. Há sentimentos exclusivamente individuais, e a patifaria é um desses. Se um povo pratica acções criminosas, é porque perdeu a consciência do que seja crime. O povo é sempre sincero. A sinceridade, eis aí o segredo de José Agostinho; a franqueza foi a sua força; o desinteresse, a origem do seu prestígio. O cinismo desbragado, isto é, a sinceridade e a franqueza levadas até à impudência, com aquele desaforo dos que, não tendo vergonha têm o mundo por si, foram a nota dominante e a faculdade íntima do polemista que se achou desse modo num perfeito acordo com o povo. Plebeu, sem perfídias de civilizado, rústico, sem ambages de político, foi um arrieiro das letras, é verdade, mas não foi um chatim.
Cobiçava a fama, cobiçava a popularidade mais vulgar; mas não cobiçava o dinheiro, ídolo exclusivo dos dias de hoje. Viveu sempre quase mendigo. As letras e o púlpito davam-lhe apenas para não morrer de fome. Era, a valer, o tipo do demagogo antigo ao lado de D. Miguel que reproduzia a imagem dos velhos tiranos lacedemónios do Peloponeso ou da Sicília.
Além disso, levava sobre os dias de hoje e sobre os nossos foliculários outra vantagem: as suas verrinas não eram postiças, convencionais. Havia ódios, o que não deixa de ser um bem quando há antagonismos fundamentados. A imprensa não era ainda uma comédia representada para ilusão da galeria. Quando se jogavam injúrias, arriscavam-se facadas e tiros. Era sério.
Finalmente, havia uma outra vantagem, se comparamos a Besta esfolada às Tripas viradas dos dias de hoje: é que as injúrias inflamantes, os insultos obscenos, as verrinas descompostas, dirigiam-se a um partido odiado que, de resto, pagava na mesma moeda, em vez de se dirigirem como hoje, que tudo são questões de pessoas, a fulano ou sicrano, portadores, quando muito, de uma individualidade incómoda ou de um interesse cúpido.
Estudando comparadamente o jornalismo português com meio século de intervalo, vemos que a tradição de José Agostinho se mantém nuns pontos e se oblitera em outros. Oxalá seja para melhor!

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Oliveira Martins, Perfis (edição póstuma, 1930)

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