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segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

CORRESPONDÊNCIA DE FRADIQUE MENDES

Querido Amigo .—Cumpro enfim a promessa feita na sua erudita ermida das Águas Férreas, naquela manhã de Março em que conversávamos ao sol sobre o carácter dos Antigos,—e remeto, como documento, a fotografia da múmia de Rameses II (que o francês banal, continuador do grego banal, teima em chamar Sesóstris), recentemente descoberta nos sarcófagos reais de Medinet-Abou pelo professor Maspero.
Caro Oliveira Martins, não acha V. picarescamente sugestivo este facto—Ramsés fotografado ?... Mas aí está justificada a mumificação dos cadáveres, feita pelos bons Egípcios com tanta fadiga e tanta despesa, para que os homens gozassem na sua forma terrena, segundo diz o Escriba, «as vantagens da Eternidade!» Rameses, como ele acreditava e lhe afirmavam os metafísicos de Tebas, ressurge efectivamente «com todos os seus ossos e a pele que era sua», neste ano da Graça de 1886. Ora 1886, para um Faraó da décima-nona dinastia, mil e quatrocentos anos anterior a Cristo, representa muito decentemente a Eternidade e a Vida Futura . E eis-nos agora, podendo contemplar as «próprias feições» do maior dos Ramesidas, tão realmente como Hokem seu Eunuco-Mor, ou Pentaour seu Cronista-Mor, ou aqueles que outrora em dias de triunfos corriam a juncar-lhe o caminho de flores, trazendo «os seus chinós de festa e a cútis envernizada com óleos de Segabai». Aí o tem V. agora diante de si, em fotografia, com as pálpebras baixas e sorrindo. E que me diz a essa face real? Que humilhantes reflexões não provoca ela sobre a irremediável degeneração do homem! Onde há aí hoje um, entre os que governam povos, que tenha essa soberana fronte de calmo e incomensurável orgulho; esse superior sorriso de omnipotente benevolência, duma inefável benevolência que cobre o Mundo; esse ar de imperturbada e indomável força; todo esse esplendor viril que a treva de um hipogeu, durante três mil anos, não conseguiu apagar? Eis aí verdadeiramente um Dono de homens ! Compare esse semblante augusto com o perfil sorno, oblíquo e bigodoso dum Napoleão III; com o focinho de buldogue acorrentado dum Bismarque; ou com o carão do Czar russo, um carão parado e afável que podia ser o do seu Copeiro-Mor. Que chateza, que fealdade tacanha destes rostos de poderosos!
Donde provém isto? De que a alma modela a face, como o sopro do antigo oleiro modelava o vaso fino:—e hoje, nas nossas civilizações, não há lugar para que uma alma se afirme e se produza na absoluta expansão da sua força. Outrora um simples homem, um feixe de músculos sobre um feixe de ossos, podia erguer-se e operar como um elemento da Natureza. Bastava ter o ilimitado querer—para dele tirar o ilimitado poder. Eis aí em Rameses um ser que tudo quer e tudo pode, e a quem Ftás, o Deus sagaz, diz com espanto: «a tua vontade dá a vida e a tua vontade dá a morte!» Ele impele a seu bel-prazer as raças para Norte, para Sul ou para Leste; ele altera e arrasa, como muros num campo, as fronteiras dos reinos; as cidades novas surgem das suas pegadas; para ele nascem todos os frutos da terra, e para ele se volta toda a esperança dos homens; o lugar para onde volve os seus olhos é bendito e prospera, e o lugar que não recebe essa luz benéfica jaz como «o terrão que o Nilo não beijou» os deuses dependem dele, e Amnon estremece inquieto quando, diante dos pilones do seu templo Rameses faz estalar as três cordas entrançadas do seu látego de guerra! Eis um homen —e que seguramente pode afirmar no seu canto triunfal: —«Tudo vergou sob a minha força: eu vou e venho com as passadas largas dum leão; o rei dos deuses está à minha direita e também à minha esquerda; quando eu falo o Céu escuta; as coisas da Terra estendem-se a meus pés, para eu as colher com mão livre; e para sempre estou erguido sobre o trono do mundo!»
«O mundo», está claro, era aquela região, pela maior parte arenosa, que vai da cordilheira Líbica à Mesopotamia: e nunca houve mais petulante ênfase do que nas Panegíricas dos Escribas. Mas o homem é, ou supõe ser, inigualavelmente grande. E esta consciência da grandeza, do incircunscrito poder vem necessariamente resplandecer na fisionomia e dar essa altiva majestade, repassada de risonha serenidade, que Rameses conserva mesmo além da vida, ressequido, mumificado, recheado de betume da Judeia.
Veja V., por outro lado, as condições que cercam hoje um poderoso do tipo Bismarque. Um desgraçado desses não está acima de nada e depende de tudo. Cada impulso da sua vontade esbarra com a resistência dum obstáculo. A sua acção, no Mundo, é um perpétuo bater de crânio contra espessuras de portas bem defendidas. Toda a sorte de convenções, de tradições, de direitos, de preceitos, de interesses, de princípios, se lhe levanta a cada instante diante dos passos, como marcos sagrados. Um artigo de jornal fá-lo estacar, hesitante. A rabulice dum legista obriga-o a encolher, precipitadamente, a garra que já ia estendendo. Dez burgueses nédios e dez professores guedelhudos, votando dentro duma sala, estatelam por terra o alto andaime dos seus planos. Alguns florins dentro dum saco, tornam-se o tormento das suas noites. É-lhe tão impossível dispor dum cidadão como dum astro. Nunca pode avançar duma arrancada, erecto e seguro tem de ser ondeante e rastejante. A vigilância ambiente impõe-lhe a necessidade vil de falar baixo e aos cantos. Em vez de «recolher as coisas da terra, com mão livre»—surripia-as às migalhas, depois de escuras intrigas. As irresistíveis correntes de ideias, de sentimentos, de interesses, trabalham por baixo dele, em torno dele: e parecendo dirigi-las, pelo muito que braceja e ronca de alto, é na realidade por elas arrastado. Assim um omnipotente, do tipo Bismarque, vai por vezes em aparência no cimo das grandes coisas;—mas como a bóia solta, vai no cimo da torrente.
Miserável omnipotência! E o sentimento desta miséria não pode deixar de influenciar a fisionomia dos nossos poderosos, dando-lhe esse feitio contrafeito, crispado, torturado, azedado e sobretudo amolgado que se nota na cara de Napoleão, do Czar, de Bismarque, de todos os que reúnem a maior soma de poder contemporâneo—o feitio amolgado duma coisa que rola aos encontrões, batendo contra muralhas.
Em conclusão:—a múmia de Rameses II (única face autêntica do homem antigo que conhecemos) prova que, tendo-se tornado impossível uma vida humana, vivida na sua máxima liberdade e na sua máxima força, sem outros limites que os do próprio querer—resultou perder-se para sempre, no tipo físico do homem, a suma e perfeita expressão da grandeza. Já não há uma face sublime: há carantonhas mesquinhas, onde a bílis cava rugas por entre os recortes do pêlo. As únicas fisionomias nobres são as das feras, genuínos Rameses no seu deserto, que nada perderam da sua força, nem da sua liberdade. O homem moderno, esse, mesmo nas alturas sociais, é um pobre Adão achatado entre as duas páginas dum código.
Se V. acha tudo isto excessivo e fantasista, atribua-o a que jantei ontem, e conversei inevitavelmente, com o seu correligionário P., conselheiro de Estado, e muchas cosas más . Más em epanhol; e más também em português no sentido de péssimas. Esta carta é a reacção violenta da conversa conselheiral e conselheirífera. Ah, meu amigo, desditoso amigo, que faz V. depois de receber o fluxo labial dum conselheiro? Eu tomo um banho por dentro—um banho lustral, imenso banho de fantasia, onde despejo, como perfume idóneo, um frasco de Shelley ou de Musset. Amigo certo et nunc et semper .—Fradique Mendes.
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sábado, 6 de dezembro de 2014

OS AMIGOS DE MÁRIO SOARES

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Texto de César Príncipe 


Em 30 de Novembro de 1983, chefiava Mário Soares o governo do Bloco Central, foi invectivado por manifestantes, em Coimbra. O governante pressionou um agente da PSP para que actuasse. Levados os detidos a Tribunal, o juiz Herculano Nogueira considerou não ter o caso acolhimento, pois o Código Penal exigia apresentação de queixa pelo ofendido. O estadista Soares não se conteve: Se o juiz entendeu que não foi um crime público, o problema é dele. Ficamos a saber que esse juiz não se importa que lhe chamem gatuno. O magistrado denunciou Sua Excelência ao Conselho Superior da Magistratura por desrespeito para com um órgão de soberania e a independência dos tribunais. Daí a dias, o Conselho de Ministros alterou o Código Penal, fazendo com que fosse dispensada qualquer queixa do ofendido, sempre que se tratasse de crimes de difamação, injúrias e outras ofensas contra órgãos de soberania e respectivos membros. Uma lei à medida.
Em 26 de Novembro de 2014, à saída da prisão de Évora, onde foi visitar o amigo José Sócrates, o ex-governante e ex-presidente da República e actual Conselheiro de Estado invectivou magistrados, inspectores da Judiciária e da Autoridade Tributária, quantos, ao longo de um ano, cooperaram nos fundamentos processuais (até ao momento, 800 páginas de provas indiciárias), que persuadiram um juiz de Instrução Criminal a ditar prisão preventiva para um ex-primeiro-ministro.
Mas ontem, Mário Soares, um ex-primeiro-ministro absolveu José Sócrates, outro ex-primeiro-ministro e condenou liminarmente a Justiça. O primeiro foi declarado inocente sem esperar pelo julgamento e a segunda considerada uma tropelia, uma vergonha, uma infâmia, uma bandalheira, coisa de uns tipos, de malandros. Pensaria Mário Soares, em 1983, que um belo dia, em 2014, poderia ser vítima da sua alteração do Código Penal?
É evidente que o ex-primeiro magistrado da Nação sempre adoptou a pele de animal feroz na defesa de determinados amigos. Não se trata de uma questão de idade ou de emoção de circunstância. Defendeu continuadamente o amigo Carlos Andrés Pérez, que foi presidente da República da Venezuela, alvo de impeachment por acção da Procuradoria-Geral da República e do Congresso Nacional, sendo destituído, em 1993, detido preventivamente e depois sentenciado a dois anos e quatro meses de prisão. Acusação confirmada: peculato doloso e apropriação indevida. No que toca à fortuna pessoal, por via política, as estimativas situavam André Pérez ao nível das centenas de milhões de dólares. Era alcunhado saudita.
Igualmente defendeu convictamente o amigo Bettino Craxi, ex-primeiro ministro de Itália, amigo de Berlusconi, apanhado na Operação Mãos Limpas.
Demitiu-se por corrupção. Não cumpriu a pena de 14 anos. Fugiu para a Tunísia, onde faleceu, amparado pelos 150 milhões de euros da conta poupança afincadamente amealhada ao leme do governo.
Neste momento, José Sócrates não é inocente: apenas beneficia de presunção de inocência. Ontem, em Évora, Mário Soares, ex-primeiro ministro e ex-presidente da República e actual conselheiro de Estado, protagonizou uma cena de degradação entre o patético e o preocupante. O patético é óbvio. O senador está a precisar de descanso no Palácio da Pena. O preocupante é que alguém o secunde, pois está convencido que o país pensa como ele. José Sócrates até poderá ter alguma razão para queixumes. Mas muito mal andará se continuar a receber visitas de nível tão elevado.
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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O LEITOR TEM OPINIÃO SOBRE O CASO JOSÉ SÓCRATES? NÃO TENHA

O leitor tem opinião sobre o caso José Sócrates? Não tenha. Isso configura um delito de julgamento na praça pública. A não ser que ache que José Sócrates está a ser vítima de justicialismo. Nesse caso, tem licença de porte de opinião. Para não haver dúvidas, aqui vai uma cartilha com o que é admissível pensar:
a) Avaliar a hipótese de José Sócrates ser culpado? Não se pode.
b) Levantar dúvidas sobre a idoneidade do juiz Carlos Alexandre? Pode-se.
c) Questionar as reais motivações do procurador Rosário Teixeira? Pode-se.
d) Sugerir que Joana Marques Vidal orquestrou este charivari? Pode-se.
e) Desconfiar de um propósito tenebroso do sistema judicial? Pode-se.
f) Suspeitar de manipulação obscura pela comunicação social? Pode-se.
g) Insinuar que o Passos Coelho lucra com isto? Pode-se.
h) Alvitrar que Portas é que devia ir preso por causa dos submarinos? Pode-se.
i) Considerar que Cavaco Silva tem negócios ilícitos com os seus amigos do BPN? Pode-se.
j) Conjeturar que isto é tudo uma cabala montada pelo PSD para distrair dos vistos gold? Pode-se.
Em termos de limitação à liberdade de opinião, só é proibido achar que José Sócrates pode ser culpado. Quem violar esta disposição tem de se haver com a brigada de trânsito em julgado. De resto, é tudo debatível.
Mas mesmo a defender José Sócrates há que ter cautela. Por exemplo, João Soares disse que "exceto por crime de sangue, em flagrante delito, não aceito a prisão (…) de um ex-primeiro-ministro como José Sócrates". Precipitou-se. Mesmo segurando arma pingona de sangue cravada em cadáver, nunca se aceitaria a detenção de Sócrates. A presunção de inocência manter-se-ia. Possivelmente seria legítima defesa. Ou um acidente. Ou, o mais provável, uma armadilha da suposta vítima que se lançara contra Sócrates enquanto este cortava o pão, para se empalar 17 vezes na faca e incriminar quem só desejava fazer uma sandes mista.
Entretanto, debrucemo-nos à enorme parcialidade demonstrada pela Justiça. De todos os ex-primeiros-ministros vivos, por acaso detiveram Pinto Balsemão no aeroporto por suspeitas de corrupção no caso Cova da Beira? E à chegada de que voo é que incomodaram Mário Soares a propósito da falsificação de documentos da Licenciatura em Engenharia? Ou Cavaco Silva, por alegada troca de favores no caso do TagusPark? E Guterres por beneficiar de um RERT por ele aprovado? Já para não falar de Durão Barroso, pelo Face Oculta, e Santana Lopes, pelo Freeport. Porque é que tinham de embirrar logo com este?
Num ranking de sanha persecutória, José Sócrates entra direto para o top 5 dos mais injustiçados da História. Neste momento, a tabela organiza-se assim: 5) Bruxas de Salém; 4) Capitão Dreyfus; 3) Galileu; 2) José Sócrates [nova entrada]; 1) Jesus Cristo. Apesar de uma detenção no Jardim de Getsémani ser menos maçadora do que na manga de desembarque de um voo TAP, e mesmo tendo em conta que, na verdade, Jesus estava mesmo a pedi-las, o Nazareno continua à frente porque a sua condenação injusta originou a maior religião do mundo. Mas José Sócrates ainda tem tempo.

José Diogo Quintela in "Público"
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