Texto de César Príncipe
Em 30 de Novembro de 1983, chefiava Mário Soares o governo do Bloco Central, foi invectivado por manifestantes, em Coimbra. O governante pressionou um agente da PSP para que actuasse. Levados os detidos a Tribunal, o juiz Herculano Nogueira considerou não ter o caso acolhimento, pois o Código Penal exigia apresentação de queixa pelo ofendido. O estadista Soares não se conteve: Se o juiz entendeu que não foi um crime público, o problema é dele. Ficamos a saber que esse juiz não se importa que lhe chamem gatuno. O magistrado denunciou Sua Excelência ao Conselho Superior da Magistratura por desrespeito para com um órgão de soberania e a independência dos tribunais. Daí a dias, o Conselho de Ministros alterou o Código Penal, fazendo com que fosse dispensada qualquer queixa do ofendido, sempre que se tratasse de crimes de difamação, injúrias e outras ofensas contra órgãos de soberania e respectivos membros. Uma lei à medida.
Em 26 de Novembro de 2014, à saída da prisão de Évora, onde
foi visitar o amigo José Sócrates, o ex-governante e ex-presidente da República
e actual Conselheiro de Estado invectivou magistrados, inspectores da
Judiciária e da Autoridade Tributária, quantos, ao longo de um ano, cooperaram
nos fundamentos processuais (até ao momento, 800 páginas de provas
indiciárias), que persuadiram um juiz de Instrução Criminal a ditar prisão
preventiva para um ex-primeiro-ministro.
Mas ontem, Mário Soares, um ex-primeiro-ministro absolveu
José Sócrates, outro ex-primeiro-ministro e condenou liminarmente a Justiça. O primeiro
foi declarado inocente sem esperar
pelo julgamento e a segunda considerada uma tropelia, uma vergonha, uma
infâmia, uma bandalheira, coisa de uns tipos, de malandros. Pensaria Mário Soares, em 1983, que um belo dia, em
2014, poderia ser vítima da sua alteração do Código Penal?
É evidente que o ex-primeiro magistrado da Nação sempre
adoptou a pele de animal feroz na
defesa de determinados amigos. Não se trata de uma questão de idade ou de emoção
de circunstância. Defendeu continuadamente o amigo Carlos Andrés Pérez, que foi presidente da República da Venezuela, alvo de impeachment por acção da
Procuradoria-Geral da República e do Congresso Nacional, sendo destituído, em
1993, detido preventivamente e depois sentenciado a dois anos e quatro meses de
prisão. Acusação confirmada: peculato
doloso e apropriação indevida. No que toca à fortuna pessoal, por
via política, as estimativas situavam André Pérez ao nível das centenas de
milhões de dólares. Era alcunhado saudita.
Igualmente defendeu convictamente o amigo Bettino Craxi, ex-primeiro ministro de Itália, amigo de Berlusconi, apanhado na
Operação Mãos Limpas.
Demitiu-se por corrupção.
Não cumpriu a pena de 14 anos. Fugiu para a Tunísia, onde faleceu, amparado
pelos 150 milhões de euros da conta poupança afincadamente amealhada ao leme do
governo.
Neste momento, José Sócrates não é inocente: apenas beneficia de presunção de inocência. Ontem, em
Évora, Mário Soares, ex-primeiro ministro e ex-presidente da República e actual
conselheiro de Estado, protagonizou uma cena de degradação entre o patético e o
preocupante. O patético é óbvio. O senador
está a precisar de descanso no Palácio da Pena. O preocupante é que
alguém o secunde, pois está convencido que o país pensa como ele. José Sócrates
até poderá ter alguma razão para queixumes. Mas muito mal andará se continuar a
receber visitas de nível tão elevado.
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