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sábado, 30 de outubro de 2010

O BOM SAMARITANO, VICENTE, A FÉNIX DA APL, HISTÓRIAS DE ENCANTAR, E HANS CHRISTIAN ANDERSON

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Com a idade, as pessoas têm tendência para se repetir. Infelizmente, não sou excepção a confirmar a regra. Esforço-me para não falar ene vezes na mesma coisa e, mesmo assim, tenho recidivas. Mas hoje tenho justificação. Não por me ter tornado aficionado de corvos, mas porque há desenvolvimentos que criam situações novas, ou seja, não me repito: qual músico de Jazz, inovo sobre o mesmo tema. Vou falar outra vez do Vicente, habitué na área envolvente do Museu da Electricidade. Vicente não é um corvo qualquer. Mesmo que fosse, valia a pena falar dele muitas vezes. Mas Vicente tem uma história! Quase tão linda como o brilho das penas.

Hoje assisti outra vez ao espectáculo da refeição da ave, servida por um waiter completamente fascinante, como o passeriforme. Não resisti e meti conversa.

Então, o reformado pescador frustrado, sobre quem teci algumas considerações jocosas – devia estar calado quando o fiz – contou-me a história do “seu” Vicente.

Encontrou-o ali, há cerca de ano e meio, doente, agonizante, quase morto. Vítima das mais odiosas sevícias das gaivotas. Até os insignificantes pardais o molestavam, qual fábula do leão moribundo e do burro. Só que o leão, neste caso, nem forças tinha para lançar o último rugido. Com as penas das asas cortadas, sem poder voar, esperava morte rápida para acabar com tamanha humilhação. Ele, capaz de desancar quatro ou cinco corpulentas gaivotas!

Tinha sido estupidamente transformado em animal doméstico por gente medonha que lhe cortou as penas das asas para não fugir. Adoeceu, e tais biltres nem sequer tiveram a digna coragem de o abater. Abandonaram-no naquele jardim, assim aliviando a consciência do comportamento ignóbil, deixando-o exposto ao sofrimento da humilhação, pior que o físico.

O meu interlocutor levou-o para casa, tratou-lhe as feridas, alimentou-o e, como a sua mulher trabalhava numa empresa da indústria farmacêutica, arranjou vitaminas que, ingénua mas amorosamente, lhe dava, na esperança de acelerar a recuperação do enfermo.

Ingénuamente mas, por razões não esclarecidas, não é que o amigo começou a melhorar e, em duas semanas, estava como novo? Intervenção do além, comovido com tal generosidade? Inesperada evolução ditada pelas leis misteriosas do universo? Não sei. Mas fiquei a saber que Vicente, mesmo sem asas cortadas, não abandonava o novo lar!

As aparências enganam e aquele nobre samaritano teve discernimento para pensar que a vontade do Vicente, de se tornar quase em ave de gaiola, não podia satisfazer. Os pais têm muitas vezes de, contrariados, não satisfazer os desejos dos filhos, mesmo que seja fácil satisfazê-los. O samaritano pensou bem. Acolhê-lo e tratá-lo numa aflição, sim. Deixá-lo perder dignidade, não. Mesmo que tal fosse doloroso, tinha de devolvê-lo à liberdade não desejada.

Um belo dia, pegou nele, pousou-o na relva próxima do Museu da Electricidade, e disse: ”Vai à vida Vicente. Desejo-te as maiores felicidades”. O que deve ser é uma coisa, e o que é, é outra. Vicente foi à vida, mas não esqueceu o benfeitor. Percebeu que ele ia ali todos os dias dar banho à minhoca e fez um plano: diariamente iria vê-lo. Assim fez e venceu a lucidez do benfeitor, enamorado pela ave. Começou a trazer-lhe uma pêra ou maçã, depois queques, depois amendoins, depois, blá, blá, blá. Hoje o samaritano gasta mais de seis euros por dia para apaparicar o filho adoptado.

Bonito, não é?

Muito bonito!

Mas as coisas não são tão simples assim. Há os sábados e os domingos. Vicente não tem calendário e, por isso, pode não perceber porque ele não aparece nesses dias. Samaritano passa a ir lá, mesmo sem dar banho à minhoca, para apaparicar Vicente.

Vicente é”humano”. Errar é próprio do homem. Um dia, tem um devaneio não esclarecido e deixa de aparecer. Os queques regressam a casa primeiro e, depois, são simplesmente deitados ao lixo porque a comida do Vicente não passa na garganta do samaritano saudoso.

Duas semanas mais tarde, súbita e inesperadamente, quando o bom samaritano sai do carro, surge Vicente eufórico a cantar em altos berros! Teve saudades, não dos queques, mas do benfeitor. Benfeitor não pode conter as lágrimas com tal alegria. Lágrimas que voltaram hoje ao contar-me a história. Também eu estava quase a chorar e volto agora a estar, ao escrever isto!

História digna de inspirar um contador a valer de histórias para crianças. Digna de inspirar Hans Christian Andersen. Mas Andersen está morto e não anda por aí ninguém capaz de pegar nisto capazmente. Alguém acabará por estragar a história, com um conto pindérico.

Falta-me uma fotografia do samaritano. Na atrapalhação emocional decorrente de o ouvir, até me esqueci de lhe pedir para posar. Amanhã peço-lhe e vou dar-lhe a fotografia do Vicente mais uma cópia do poema de Edgar Allan Poe traduzido por Fernando Pessoa. Estou a ver os leitores a pensar que o homem não “mete dente” naquilo. Errado!

Aquele homem generoso, que pesca alpercatas no Tejo, faz parte de um grupo de pescadores que se deslocam para lá em triciclos “Piaggio”, em ciclomotores a cair aos bocados, até a pé. Aquele homem tem a cana de pesca enfiada num buraco do cais, enquanto cuida do Vicente e espera em vão por um peixe suicida. Faz parte de um grupo que tem direito a ouvir a “ronca” do ferry da Trafaria quando este se aproxima, para poderem retirar as linhas da água a tempo de o mestre não lhes estragar as artes porque, do alto da embarcação, não as vê. Aquele homem tem um Mercedes-Benz. Conhece a história da viagem dos restos mortais do mártir S. Vicente, do Algarve até Lisboa, numa nau escoltada e guiada por dois corvos, muito melhor do que eu. Aquele homem é muito mais culto do que nós todos juntos.

Poesia de Allan Poe? É canja para ele!

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