A resposta é
conhecida: “O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele é
culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a
orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não
reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se
servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude [1]! Tem a coragem
de te servires do teu próprio entendimento. Eis a palavra de ordem do
iluminismo”.
Recordou me ainda
que o Vaticano II (1962-1965) foi o começo de uma clara escuta de alguns ecos
da modernidade, há muito esquecidos: a consciência como primeira instância
moral (GS 16); a declaração sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae),
destacando que a própria objectividade da verdade moral “não se impõe de
outro modo senão pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao
mesmo tempo suave e forte” (n. 1).
Inteiramente de
acordo, mas vamos por partes. Kant tem razão: a recusa preguiçosa de cada
pessoa se servir do próprio entendimento e andar sempre a recorrer a um
“director de consciência” é um exercício de infantilismo e, por outro lado, uma
atitude obscurantista de quem alimenta essa dependência. No entanto, seria
igualmente infantil não alimentar o próprio entendimento com as investigações dos
outros. O culto da autoignorância para ser dono das suas decisões éticas, é uma
parvoíce. Somos seres de relação em todas as dimensões. Não somos apenas
responsáveis diante da nossa consciência, mas também pela consciência que podemos ter do
nosso mundo e do mundo dos outros.
2. Louis Dingemans
(1922-2004), sociólogo e teólogo, era um dominicano belga que aprofundou, com
um grupo de trabalho interdisciplinar, a situação eclesial dos divorciados
recasados [2].
Para a validade de
uma celebração católica do casamento sempre foi exigido o consentimento livre
dos esposos e, como dizia Kierkegaard, o amor nunca é tão grande como quando se
assume como um dever recíproco. A multiplicidade de uniões infelizes e
divórcios, a fragilidade dos amores humanos ainda não conseguiram estancar o
sonho e o desejo de muitas pessoas se aliarem para construírem uma história
comum, que não esteja dependente dos humores de cada dia. Encontram-se até pessoas
“pouco praticantes” que pedem para se casar pela Igreja e não é apenas pelas
fotografias. Como diz L. Dingemans, parece que têm uma vaga percepção de que o
casamento, sendo uma loucura, precisa do Deus do Evangelho, protector dos
loucos, sentindo que todo o verdadeiro amor é de origem divina.
Muito ou pouco
praticantes, por culpa ou sem culpa de um ou de ambos, o facto é que existem
rupturas sem remédio. Surgem, depois, novas uniões. Pondo de lado a leviandade
e os caprichos de muitos casos, também existem divorciados recasados que nesses
processos complicados aprofundaram e redescobriram a sua fé, que desejam
alimentar.
Como já vimos em
artigos anteriores, não são católicos excomungados. Pelo contrário, são
convidados a participar na vida da Igreja e a frequentarem a Eucaristia. Mas
são proibidos de comungar: convidados para uma refeição e impedidos de comer. À
primeira não se entende esta incongruência e à segunda, ainda menos. Invoca-se
um estado permanente de violação da aliança matrimonial. Razão apresentada:
existe uma contradição objectiva de ordem simbólica, pois a aliança entre Deus
e a Humanidade, entre Cristo e a sua Igreja é actualizada pelo laço entre marido
e mulher. O autor citado mostra, de forma analítica, que este é um argumento falacioso.
Deus é sempre fiel, mas os seres humanos não são Deus. Podem falhar e a
misericórdia de Deus nunca falha.
3. É bom não esquecer
uma oração da missa do domingo passado: Senhor, que dais a maior prova do vosso
poder quando perdoais e vos compadeceis, derramai sobre nós a vossa graça.
O Papa Francisco, que
tem muita graça em receber a graça de Deus, resolveu, na audiência geral do
passado dia 10, propor que a Igreja, em todas as suas expressões, seja uma escola
da misericórdia. Não estávamos habituados. Era mais associada a um ministério
com tribunais
lentos e sem
piedade.
[1] Atreve-te a pensar
[2] Cf. dossier Chrétians qui sont
dévorcés et remariés, Centre Dominicain de
Froismont, Bélgica ; Louis Dingemans, Mariage et alliance. L’ambiguïté d’un symbole, Rev. Lumière et Vie, n 206 (1992), pg 25-38 ; Jesus face au divorce,
Racine|Fidélité, 2004
.
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